Hoje estava lavando roupa e o
tanque fica bem num ângulo que dá pra ver o quarto do pai. Vi que ele
conversava muito animado com uma fotografia que achou numa revista e que
colocou na mesinha de suporte. Ela fica ali como num altar. É uma foto de um
grupo de pessoas, num tempo passado, creio que deve ser lá pelos anos 1940. Não
sei quem são, e nem ele, presumo. Mas, de qualquer forma ela o distrai e ele
conversa amiúde com aquele povo. O papo é animado, ele mexe as mãos, ri,
argumenta. É bem engraçado.
O pai passa os dias assim. Acorda, cochila,
come bergamota, cochila, fuma, fica andando em volta da casa, vai até o portão
e volta, pega os lixos da lixeira e traz para a cozinha, depois leva outra vez
para a lixeira. Almoça, cochila, fica andando em volta da casa, prá lá e prá cá
no portão, fuma, ouve música, come banana. Depois, janta, ouve música, come
bergamota, toma chá, vê televisão e vai dormir.
É uma vida não produtiva, que
alguns chamariam inútil. No mundo do trabalho, do capital, ele é um inútil. Ele
não pinta, não compõe, não se lembra do passado, não faz absolutamente nada que
sirva para alguma coisa. Então, talvez por isso, que alguns governantes não se
importem com a morte dos velhos agora na pandemia, afinal, são inúteis, não
servem pra nada.
Quem disse que é preciso ser útil o tempo todo?
Quando eu vejo o meu pai, aos 88 anos, na sua
rotina diária de andanças pelo quintal, num ir e vir aparentemente sem sentido,
não posso deixar de me comover. Sua inutilidade é um fato. Ele que sempre foi
arrimo da família, agora não faz mais nada por ninguém. Passa o dia vivendo sem
qualquer preocupação.
Não seria então a inutilidade
um presente? Um momento de viver para si, só na fruição? Penso que sim. Quem
disse que é preciso produzir o tempo todo? Quem disse que há que se cumprir um
protocolo de utilidade para ser uma pessoa?
O pai começou a trabalhar cedo, em escritório
de contabilidade. Teve uma vida boa até os quarenta e poucos anos, quando
perdeu tudo e teve de começar do zero. Um velho já para o mundo do trabalho.
E, ainda assim, ele se
reergueu. Estudou, se esforçou, e terminou sua jornada de trabalhador como
chefe do almoxarifado do DEER de Minas Gerais. Nunca se queixou do trabalho
duro e sempre foi em frente, sem reclamar. Como empregado era um calvinista.
Nunca chegou atrasado, nunca
faltou, deu sempre o seu máximo. Fazia o impossível pelos seus colegas. Como
pagador de trabalhadores no trecho – obras nas estradas – ele se virava nos 30
para fazer chegar o dinheiro, fizesse chuva ou sol. Chegou a atravessar um rio,
amarrado numa corda, para garantir o salário dos companheiros. Era o que se
chama de “caxias”.
Ele tem uma história que está viva em nós
O pai criou os filhos sempre ensinando o
sentido da honestidade e do trabalho. Pagava as contas religiosamente. Era
capaz de ter um troço se não tivesse dinheiro para quitar as dívidas e o sinal para
a demência foi justamente esse: de repente ele se esqueceu de pagar as contas.
Isso só poderia ser doença. E era.
O pai foi um cara extraordinário ao longo de
sua vida “produtiva”. Ele tem uma história linda de perseverança, de coragem,
de derrotas e superações. Ele tem uma história, que está viva em nós.
Por isso que hoje, quando ele aproveita – sem
culpa - desse momento de inutilidade, eu me encho de ternura. É bom vê-lo sem a
neurose das contas, sem a necessidade de cumprir afazeres, obrigações. Na sua
vida inútil ele está livre.
Ele pode conversar com os
amigos imaginários nas fotos, ele pode degustar as frutas, dormir, caminhar,
ouvir música sem preocupação. Ele tem quem lhe cuide, que lhe dê o alimento na
hora, troque sua roupa, dê o banho, quem dance com ele, e lhe encha a cama de
perfumes e cobertas quentinhas.
Ele é uma vida que foi vivida na plenitude,
mas sempre acorrentada ao trabalho, à obrigação, ao dever. Agora, não. É só um
corpo dançante, que toma vinho e cospe o que não quer comer.
Por isso que a vida dele importa. Tanto quanto
a do jovem que ainda não viveu tudo o que ele já percorreu. Por isso que não é
possível escolher entre um e outro. Cada um é um universo. O jovem, ainda em
jornada. O velho, que já cumpriu tanto.
Respeito pelas coisas inúteis
A proposta do “deixa morrer
os velhos e os fracos”, que aparece agora, com a pandemia, tem me consumido os
dias e noites. Não posso aceitar. Porque, como Manuel de Barros, tenho respeito
pelas coisas inúteis, que existem apenas para a fruição.
Um velho dedal esquecido numa
caixa, um quadro sem valor, um lápis de cor quebrado. Coisas que evocam
belezas. O pai, esse homem de tanta vida, é assim. Um ser de fruição. Um
evocador de belezas. Ele merece viver sem a pressão de ser útil.
Ele é velho, inútil agora, mas já riscou um caminho
nesse mundão de Deus. Sua vida importa. E muito. Assim como a vida de outros
velhos e velhas desse planeta azul, cheios de histórias, memórias e belezuras.
Elaine
Tavares é jornalista e acredita que os textos, uma vez escritos, são livres.
Foto P&B - pés de criança: Photo by Lisa Cope on Unsplash
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